Fernando Rozental: A história do “Pobre Garoto” que finalizou Rickson Gracie

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Rozental enfrentou Rickson três vezes. Finalizou na primeira, venceu a segunda por pontos e foi finalizado no terceiro confronto

Por Elton Silva

“Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, ele já estava nas minhas costas, me estrangulando. Bati no chão, furioso comigo mesmo e decidi treinar ainda mais”. 

O relato de Rickson Gracie em sua autobiografia “Respire: Uma Vida em Movimento”, deixou muita gente da comunidade da Arte Suave curiosa querendo saber quem foi o adversário que conseguiu finalizá-lo em uma de suas primeiras competições. Pois o historiador marcial Elton Silva, autor da trilogia “Muito Antes do MMA”, foi atrás e descobriu não só o nome, mas a história por trás de Fernando Rozental. Uma figura lendária do Jiu-Jitsu brasileiro durante as décadas de 1970 e 80, cuja história permaneceu ocultada por grande parte da comunidade e ignorada pela historiografia da arte suave. Na reportagem a seguir, Elton relembra os principais capítulos da história de Rozental e nos traz sua descrição detalhada sobre sua trilogia com Rickson Gracie nos tatames.   

Rozental enfrentou Rickson três vezes. Finalizou na primeira, venceu a segunda por pontos e foi finalizado no terceiro confronto

    

No livro, Rickson relembra episódios marcantes de sua juventude no seio da família que ajudou a fundar o Jiu-Jitsu brasileiro. Em um trecho particularmente revelador, na página 181, ele compartilha o impacto emocional e transformador de uma derrota sofrida na sua juventude, quando ainda era faixa laranja. “A última vez que perdi uma competição, tinha catorze anos e era faixa laranja, em um pequeno torneio que meu pai levou algumas das crianças menores. Lembro como se fosse ontem. Quando a partida começou e meu oponente e eu caímos no tatame, fui surpreendido por sua força física. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, ele estava nas minhas costas e me estrangulava. Bati no chão e fiquei tão bravo comigo mesmo que passei a treinar ainda mais. O pobre garoto que me vencera agora tinha um alvo na cabeça! Nós nos enfrentamos novamente alguns meses depois em outra competição. Eu venci, mas só por decisão do árbitro, o que me deixou ainda mais bravo e mais motivado a treinar para a próxima disputa. Quatro ou cinco meses depois, nos encontramos como faixas verdes. Quando a luta começou, ele colocou o pé no meu quadril e me prendeu em uma chave de braço leve. A perna dele passou por cima da minha cabeça, meu braço foi alongado e meu cotovelo super esticado. Mesmo sentindo meus ligamentos e tendões fazendo “pop”, não bati. Em vez disso, liberei meu braço, passei para o topo e o estrangulei. Eu fiquei falando: “Não bate, filho da puta! Não bate!” Ele bateu no tatame e nunca mais foi um desafio para mim.”

No trecho acima, Rickson relata como, após o revés inicial, intensificou seus treinos com ainda mais foco e determinação, motivado pelo desejo de revanche. Meses depois, reencontrou o mesmo adversário e, segundo ele, embora tenha vencido por decisão do árbitro, confessou sentir-se insatisfeito com sua performance. Pouco tempo depois, aconteceu um terceiro confronto, agora ambos já como faixas verdes, no qual Rickson mais uma vez enfrentou a pressão daquele que apelidou de “pobre garoto”, o oponente que deixaria uma marca definitiva em sua trajetória.

Curiosamente, o aplicativo “ChatGPT” de inteligência artificial, informa que “Oficialmente, ninguém finalizou Rickson Gracie.” Diz ainda que: “Até hoje, não há registro confirmado ou evidência confiável de que Rickson Gracie tenha sido finalizado (ou seja, forçado a desistir via submissão) em uma luta – nem em competições oficiais, nem em vale-tudo, nem no jiu-jitsu esportivo”. Mas então, quem diabos seria o “pobre garoto” ocultado por Rickson Gracie, como o único a tê-lo finalizado em competição? 

Neste artigo repleto de detalhes, o até então anônimo “pobre garoto”, ganha nome, história e um reconhecimento tardio: Fernando Rozental.

PRIMEIROS PASSOS COM JOÃO ALBERTO BARRETO

Seu testemunho, ressurge um capítulo ocultado da história do jiu-jitsu, não como contestação ao legado de Rickson, mas pela memória de uma história que merece ser contada com justiça e integridade.

Sobre essa trajetória, o próprio Rozental, que sempre valorizou e prestigiou a “Velha Guarda da Família Carlson Gracie”, mas que até então jamais havia concedido entrevistas, deixa registrado: “Em 50 anos, o Jiu-Jitsu comprovou a sua eficácia como arte marcial, continuou sendo praticado e passado de geração em geração, e hoje é predominante no mundo. Todos que participaram e contribuíram para a evolução do Jiu-Jitsu, professores e lutadores, merecem respeito e reconhecimento, especialmente por parte daqueles que se beneficiaram da arte suave em suas vidas. Faço referência especial aos Grão-Mestres João Alberto Barreto e Carlson Gracie, ícones da geração seguinte a de Hélio e Carlos Gracie, que deram continuidade e brilharam no JIU-JITSU, e ao meu Mestre Lucio Novelli, discípulo do João Alberto, que me transmitiu ensinamentos técnicos apurados, a base para eu desenvolver o meu modo de lutar, técnicas de ataque surpreendentes e eficientes. Suas academias sempre foram a extensão da minha casa, formamos todos uma grande família e deixamos um legado valioso ao Jiu-Jitsu.”

Com essas palavras, o até então “pobre garoto” ganha, enfim, um rosto, um nome e uma voz, resgatado da sombra da história neste pequeno artigo escrito por Elton Silva, que busca devolver-lhe o lugar que merece na memória do Jiu-Jitsu brasileiro.

Fernando Rozental nasceu em 24 de fevereiro de 1960 e iniciou-se no Jiu-Jitsu em 1972, aos 12 anos, sob a orientação do Grande Mestre João Alberto Barreto e de Lucio Novelli. Já aos 13 anos, em 1973, conquistava a final do 1º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu da Guanabara, também reconhecido como o primeiro do Brasil.

Aos 14 anos, recém completados, com apenas 2 anos de treino, já surpreendia e finalizava lutadores mais fortes e experientes nos momentos iniciais da luta, destacando-se não apenas por seu estilo agressivo e preciso, mas também por uma impressionante sequência de vitórias em campeonatos oficiais da antiga Guanabara, incluindo duas vitórias sobre a lenda Rickson Gracie, ainda na adolescência de ambos.

As medalhas conquistadas nos primeiros campeonatos de Jiu-Jitsu

“Comecei a praticar o Jiu-Jitsu no início de 1972, com 12 anos, levado pelo Mestre João Alberto Barreto, para a sua academia, em Copacabana, onde permaneci por 4 anos aprendendo conhecimentos muito técnicos e diversificados, com o Professor LUCIO NOVELLI, que foi de fato o meu professor, técnicas diversas de defesa pessoal, que me proporcionou reflexo condicionado, pontapés diversos, que treinávamos já no aquecimento, treinos de pisão lateral para bater e manter distância do oponente, antes de juntar, além de treinos em situações específicas, formando uma base ampla, a partir da qual desenvolvi um modo de lutar “pra frente”, atacando e finalizando, além de situações fora da academia, que foram resolvidas rapidamente, sem a necessidade de evoluir para um confronto de maiores proporções.Tenho enorme satisfação por ter participado do INÍCIO DA FAMÍLIA CARLSON GRACIE, em Copacabana, que se tornou uma FÁBRICA DE CAMPEÕES, e de professores que deram continuidade ao crescimento da “Família” formando novos lutadores e professores espalhados pelo mundo”.  

PRIMEIRA GERAÇÃO DA CARLSON 

A história de Rozental também é marcada por sua participação no início da família Carlson Gracie, núcleo que se transformaria em uma das maiores potências formadoras de campeões no Brasil e no mundo. Reconhecido como o terceiro faixa preta formado por Carlson, Rozental cultivou uma trajetória sólida, não apenas nos tatames, mas também na vida acadêmica e profissional, conciliando o esporte com a engenharia.

Apesar das limitações no preparo físico devido à intensa dedicação ao trabalho, Rozental conquistou inúmeras vitórias em torneios consecutivos. Seu domínio técnico, agilidade e precisão eram tamanhos que conseguia finalizar em segundos com ataques fulminantes, como também neutralizar os ataques dos adversários e evitar finalizações, o que demonstra ainda mais a eficácia das técnicas de defesa e finalização que desenvolveu ao longo de sua trajetória.

Rozental faz questão de destacar a importância histórica desse período inicial dos campeonatos organizados pela federação da então Guanabara, alertando para a negligência com a preservação da memória desses eventos:

“Percebo a escassez e mesmo inexistência de registros dos torneios e lutas de Jiu-Jitsu nos anos 70, inclusive os 3 primeiros campeonatos oficiais de jiu-jitsu do país, na Guanabara, capital do Estado do Rio de Janeiro na época, assim como também dos torneios ocorridos no subúrbio, de 1972 a 1979, em que participavam as academias Gracie, Barreto, Kioto, Conde Koma, Oriente e Monir, torneios fundamentais para a formação dos atletas da época, que viriam a pavimentar a base dos atletas excepcionais da geração seguinte, e do BJJ.” 

“EU TREINAVA POUCO, MAS FINALIZAVA MUITO”

Em 1977, aos 17 anos, Rozental interrompeu os treinos para se dedicar integralmente aos estudos, conquistando uma vaga em uma universidade pública de Engenharia. A partir dos 18 anos, passou a priorizar os estudos, o trabalho e a carreira de engenheiro e empresário. que marcou sua trajetória nos tatames. Mesmo treinando pouco e com preparo físico limitado devido à dedicação às outras atividades, Rozental continuou competindo e vencendo diversos torneios durante muitos anos. 

Rozental mantinha-se ativo nos treinos com a lendária turma “Old School” do mestre Carlson Gracie, conhecida como uma verdadeira “Tropa de Elite” do Jiu-Jitsu. Também participou de inúmeros “confrontos” com lutadores de outras modalidades que apareciam na academia para “dar um confere” e, após serem dominados, acabavam se matriculando. O saudoso Marcelo Bustamante, irmão mais velho de Murilo Bustamante e também praticante da mesma época, certa vez compartilhou uma lembrança no grupo da Velha Guarda do Carlson: “O Rozental deu um pé na cara do japonês e já caiu com o braço encaixado. O japonês perdeu o caminho de casa.”

TERCEIRO FAIXA PRETA DE CARLSON 

Rozental recebeu a faixa preta de Carlson Gracie em 24 de fevereiro de 1981, no exato dia em que completava 21 anos. Foi o terceiro aluno a conquistar essa graduação diretamente das mãos do mestre Carlson naquela geração, sucedendo dois nomes já consagrados, os lendários Carlos Rosado e Fernando Pinduka, e antecedendo Otávio Peixotinho, que originalmente treinava com Rolls Gracie.

Como faixa preta, Rozental protagonizou mais um capítulo marcante de sua trajetória ao enfrentar “Tadeu Português’, também faixa preta e um dos professores da tradicional Academia Kioto, do Mestre Francisco Mansur. Tadeu havia comparecido à academia de Carlson Gracie para treinar, e esse encontro acabou se tornando um momento memorável. Ao chegar à academia, vindo do curso de inglês, já à noite, Rozental foi informado de que Tadeu havia lesionado o braço de dois lutadores da casa. O clima era tenso, marcado por um silêncio incomum, fruto da presença intimidadora de um “estranho” alto, forte, faixa preta e agressivo, que já havia machucado dois atletas. A academia estava cheia, mas não havia nenhum outro faixa preta presente no local.

Rozental então chamou Tadeu para treinar. Logo no início, o adversário avançou com tudo, empurrando com agressividade, como um verdadeiro “touro louco”. Rozental, mantendo a calma, apenas sustentou a base com firmeza e escorou o ataque. Ambos saíram do tatame e colidiram com força contra a parede do banheiro, o impacto foi tão forte que ecoou pela academia. Após o estrondo, os dois retornaram ao centro do tatame para reiniciar o combate.

No primeiro ataque do Tadeu, ao esticar o braço direito para empurrar, Rozental reagiu de forma instantânea, aplicando um preciso “arm lock voador”, que encaixou com perfeição. Tadeu, alto e forte, tentou resistir e em vez de bater, tentou reagir, levantando Rozental do chão, em um movimento semelhante ao “bate-estaca”. Rozental, com calma, apenas apertou levemente o braço, o suficiente para o adversário sentir a pressão. O grito de dor foi inevitável. 

Rozental interrompeu o golpe imediatamente e, enquanto Tadeu reclamava que “machucou”, respondeu com naturalidade: “Descansa… e vamos continuar.” Sem maiores consequências físicas, Tadeu se retirou e não voltou mais à academia.

VENCENDO ROSADO E PEIXOTINHO

Em 1982, Rozental conquistou o campeonato interno NOGI (sem quimono) promovido por Carlson Gracie entre seus alunos mais graduados. Sua primeira luta foi contra Carlos Rosado, e a final, contra Otávio Peixotinho. Ainda no final daquele ano, venceu o campeonato universitário de Judô da UERJ, derrotando por finalização todos os adversários, incluindo, na final, o faixa preta campeão da modalidade.

Desde os 12 anos, quando iniciou sua trajetória na arte suave, Rozental já se destacava por um estilo ofensivo, direto e preciso. Sempre “pra frente”, buscava derrubar e finalizar o adversário. Jamais foi derrubado sem finalizar e nunca se limitou a puxar o oponente para a guarda de forma passiva. Quando levava a luta ao chão, era sempre como extensão de um ataque, em busca de finalização.

Nos treinos, era comum que seus adversários, ao acharem que estavam em vantagem, fossem repentinamente pegos de surpresa. Muitas vezes, percebiam, tarde demais, que haviam caído em uma armadilha, sendo envolvidos por ataques consecutivos e inesperados, que inevitavelmente os levavam à finalização. Essas características tornaram o jogo de Rozental diversificado e altamente eficaz. E foi justamente essa abordagem que se manifestou de forma mais emblemática em seus três confrontos contra Rickson Gracie, uma das figuras mais célebres e reverenciadas da história do Jiu-Jitsu em todos os tempos. 

A HISTÓRIA DOS TRÊS CONFRONTOS 50 ANOS DEPOIS 

Cinco décadas se passaram desde aqueles duelos entre dois jovens talentos, ainda em formação, mas já movidos por uma intensidade técnica e competitiva que moldaria o futuro da arte suave no Brasil. A memória desses confrontos sobreviveu no relato de quem os viveu, no silêncio respeitoso de muitos que testemunharam, e, agora, ressurge com força neste artigo que defende que a verdade histórica é tão essencial quanto a técnica no tatame. 

“Apesar de o Rickson ter ocultado o meu nome, alguns lutadores estiveram presentes nos eventos, outros conhecem ao menos parte da história, me identificaram no livro e me procuraram para esclarecer a história correta. Assim como o Rickson, também me lembro como se fosse ontem, em razão do que posso esclarecer os fatos ocorridos e a história verdadeira, de forma clara e objetiva”, esclarece Fernando Rozental. Recontar essa épica trilogia nos dias atuais, não é apenas revisitar lutas, mas reconstruir contextos, corrigir lacunas e reconhecer trajetórias históricas ocultadas por décadas. Então vamos lá

Rozental foi o 3o aluno a receber a faixa preta das mãos de Carlson Gracie em 1981

PRIMEIRA LUTA COM RICKSON

O primeiro confronto entre ambos ocorreu em 1974, durante um torneio entre as academias Gracie, Barreto e Conde Koma (do professor Orlando Barradas), realizado na academia de João Alberto Barreto, no prédio do IBEU, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 9º andar.

Na ocasião, Rozental surpreendeu o jovem Rickson Gracie com um ataque fulminante, após aplicar dois golpes precisos, uma queda de gancho por fora (O soto gare), seguida de um mata-leão, finalizou a luta em poucos segundos. Foi uma vitória rápida e incontestável.

Rozental recorda o episódio: “Na época, eu não fazia ideia de quem era o Rickson. Quando a luta começou, parti para o ataque e em 2 tempos, derrubei em queda de gancho por fora, e na confusão já peguei pelas costas finalizando com um mata-leão. Como ele declara inequivocamente em seu livro: “Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, ele já estava nas minhas costas, me estrangulando. Bati no chão”, 

Nas páginas 181 e 182 da autobiografia “Respire”, Rickson Gracie, reconheceu a superioridade do adversário naquela ocasião, admitindo que foi a única vez que foi finalizado em competição. No entanto, ao narrar os dois combates seguintes, Rickson constrói relatos que, segundo Rozental, não condizem com a realidade.  Suas versões seriam, nas palavras do próprio Rozental, “…vagas, fantasiosas e incoerentes com os fatos presenciados por diversos professores e lutadores que assistiram aos confrontos”. Segundo Rickson Gracie, em sua autobiografia, “A última vez que perdi uma competição, tinha catorze anos e era faixa laranja, em um pequeno torneio que meu pai levou algumas das crianças menores.”  No entanto, Rozental, em seu testemunho pessoal, contesta essa caracterização ao lembrar que, não havia crianças na ocasião, e que segundo a definição, criança é considerada a pessoa até os 12 anos incompletos. “Eu tinha 14 anos e poucos meses e o Rickson mais. Não éramos mais crianças, e ele mostrou que já possuía técnicas avançadas de Jiu-Jitsu, ao dominar e vencer rapidamente o Roberto Leite, da academia Conde Koma, do Orlando Barradas, também veterano faixa laranja. O Marcus Soares (Gracie) participou deste torneio, quando lutou contra os irmãos Azulay (João Alberto Barreto), e todos já eram excelentes lutadores.”

Rozental recorda ainda que “não era “pobre garoto”, e muito menos possuía essa suposta ‘força física espantosa’”. Para ele, a vitória sobre Rickson foi fruto de mérito técnico, agilidade e precisão e não de força bruta, como chegou a ser sugerido anteriormente por Rickson.

Rozental é declarado vencedor pelo Mestre Amélio Arruda, na final do 1º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu da Guanabara, realizado em 1973 no antigo Clube Mourisco, em Botafogo.

“A percepção dessa ‘força física espantosa’ foi compartilhada por outros ao longo da minha trajetória e até hoje, aos 65 anos, ainda ouço isso. Mas essa impressão é o efeito de pegadas precisas e uso inteligente de alavancas. Hélio Gracie, por exemplo, era franzino, mas tinha uma pegada poderosa. Essa é a essência do Jiu-Jitsu para o fraco: permitir que alguém fisicamente inferior finalize um oponente muito mais forte. Quando adolescente, eu treinava com adultos bem mais fortes e conseguia finalizá-los. O Jiu-Jitsu aplicado com inteligência e eficiência te permite isso.” Para reforçar sua afirmação de que era apenas um garoto comum, Rozental menciona uma foto emblemática do final de 1973, poucos meses antes do confronto com Rickson, em que aparece lutando na final do 1º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu da Guanabara, na categoria 13 anos.

A SEGUNDA VITÓRIA SOBRE RICKSON

“O pobre garoto que me vencera agora tinha um alvo na cabeça! Nós nos enfrentamos novamente alguns meses depois em outra competição. Eu venci, mas só por decisão do árbitro, o que me deixou ainda mais bravo e mais motivado a treinar para a próxima disputa”, escreveu Rickson Gracie em seu livro.

A segunda luta entre Rozental e Rickson aconteceu no 2º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu, em 1974, e terminou envolta em polêmica. Rozental contesta veementemente o relato do Gracie sobre o segundo confronto, no qual Rickson afirma ter vencido por decisão do árbitro. Segundo Rozental, essa versão simplesmente não condiz com a realidade, e esclarece um ponto técnico fundamental: A narrativa do Rickson “venci, mas só por decisão do árbitro”, é fantasiosa e sem fundamento. Não é verdade. Não houve decisão do árbitro a seu favor, e ele sequer conseguiu marcar um único ponto. Foi combativo partindo pra cima 5 vezes seguidas, para tentar derrubar na baiana (double leg), o que só serviu para fornecer impulso, que aproveitei para o lançar em queda. Após a 5ª tentativa, ele não conseguiu levantar. Eu passei a guarda, montei, entrei com a mão direita na gola para estrangular e quando eu ia entrar com a mão esquerda … tocou o gongo, encerrando a luta.  Não houve finalização. Um jurado, seu “meio irmão” Rolls Gracie, deu a vitória ao Rickson. Os outros dois jurados votaram a meu favor. A minha vitória foi inequívoca, confirmada pela decisão majoritária dos jurados, o árbitro levantando o meu braço e consolidada com a medalha de ouro entregue pelo Hélio Gracie, pai do Rickson”. 

Descrição da luta por Rozental: Ele já iniciou partindo pra cima, atropelando, para tentar me derrubar em “double leg” (baiana). Eu tinha reflexo condicionado para essa defesa, tanto que nunca fui derrubado com essa queda. Sem oferecer resistência, eu só sentava no chão, segurava em sua faixa, aproveitava o seu “embalo” para jogar ele em queda e dava cambalhota para trás junto, para tentar montar. Ele era rápido, levantava, e tentou seguidamente por 4 ou 5 vezes, a cada vez com mais embalo. A cada investida, eu repetia a queda, lançando-o pra trás em queda. Após a 5a tentativa, ele não conseguiu levantar. Eu passei a guarda, montei, estabilizei, entrei com a mão direita na gola para estrangular, e quando eu levava a mão esquerda na gola para estrangular … tocou o gongo, encerrando a luta. SALVO PELO GONGO … OU POUPADO POR QUEM ESTAVA COM O GONGO?

Eu não me lembro dele ter feito um único ponto nesta luta. Teve tão somente combatividade por tentar derrubar na baiana por 5 vezes seguidas, sem êxito.  Um dos jurados (não árbitro) que lhe deu a vitória, foi Rolls, seu “meio irmão”. Os outros 2 jurados me deram a vitória merecida, e eu recebi a medalha de campeão nas 2 categorias em que competi, meio pesado e absoluto. Me lembro que após essa “decisão” do Rolls o João Alberto Barreto, Vice Presidente da Federação na época, se levantou e deu um “pito” no Rolls com o dedo em riste na cara, e o Rolls permaneceu sentado inerte.” Rozental relata com detalhes, como conseguiu neutralizar sucessivos ataques de Rickson Gracie durante um confronto, utilizando uma adaptação técnica do “tawara gaeshi”, tradicional defesa contra a queda conhecida como “baiana”. Apoiado em reflexos condicionados e profundo conhecimento da técnica, ele comenta: “Eu só sentava no chão, segurava em sua faixa, aproveitava o seu embalo para jogar ele em queda e dava cambalhota junto com ele pra eu tentar montar …” Entre uma e outra conversa, Rozental também recorda a única ocasião em que foi realmente surpreendido por uma “baiana” bem aplicada: “A única vez que caí numa baiana muito justa, caímos juntos, eu já finalizando na gravata de frente, que eu pegava muito bem. Para entrar na baiana, o oponente quebra a postura para a frente, deixando o pescoço vulnerável. Foi em 1980, no Campeonato Carioca, já como faixa marrom, no Clube do Flamengo, na Lagoa. O oponente era o Elcio, um judoca que, se não me engano, já havia treinado com o Carlson.”

Após a segunda vitória sobre Rickson, Rozental recebeu a medalha de ouro das mãos de Hélio Gracie
Após a segunda vitória sobre Rickson, Rozental recebeu a medalha de ouro das mãos de Hélio Gracie

RICKSON VENCE A TRILOGIA 

“Quatro ou cinco meses depois, nos encontramos como faixas verdes. Quando a luta começou, ele colocou o pé no meu quadril e me prendeu em uma chave de braço leve. A perna dele passou por cima da minha cabeça, meu braço foi alongado e meu cotovelo superesticado. Mesmo sentindo meus ligamentos e tendões fazendo “pop”, não bati. Em vez disso, liberei meu braço, passei para o topo e o estrangulei. Eu fiquei falando: “Não bate, filho da puta! Não bate!” Ele bateu no tatame e nunca mais foi um desafio para mim”, narrou Rickson Gracie em seu livro.

O terceiro e último confronto entre Fernando Rozental e Rickson Gracie ocorreu durante o 3º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu, em 1975, e terminou com a vitória de Rickson, após as duas derrotas anteriores. No entanto, a luta foi marcada por controvérsias, não apenas dentro do tatame, mas também na forma como viria a ser narrada quase 50 anos depois. Ao comentar os relatos presentes na autobiografia de Rickson, Rozental contesta abertamente a versão apresentada: “A narrativa parece se referir a uma outra luta. Não houve pé no quadril, passagem de perna por cima da sua cabeça, nem chave de braço leve, como ele sugere.” Rozental, que na época tinha 15 anos e era faixa verde, relembra que Rickson entrou no tatame com uma postura nitidamente diferente, mais cauteloso, estratégico, e buscando evitar as falhas do confronto anterior. Manteve distância, evitou o ataque direto e adotou uma base invertida, com a mão esticada à frente, tudo para impedir as quedas e ataques que o haviam surpreendido na luta anterior. “Com estratégia diferente dos dois confrontos anteriores, desta vez ele não saiu atropelando e evitou o meu ataque do 1º confronto, mantendo distância, com a base invertida, a mão esquerda esticada à frente e a perna direita protegida atrás, evitando a minha queda de gancho por fora do primeiro confronto.” Ainda assim, Rozental encontrou a brecha. Com rapidez e precisão, entrou com um gancho por dentro (Ouchi gari) na perna esquerda de Rickson, que estava posicionada à frente, e já caiu direto na imobilização (Kesa gatame), com o braço esquerdo do adversário preso e encaixado em uma chave de braço improvisada ali mesmo por extinto, criada no calor do momento. “Prendi o braço esquerdo dele em uma chave de braço que criei ali na hora, e hoje, chamo de chave “pop”, como a referência do Rickson na página 182 do seu livro.” A pressão aumentava a cada segundo até que Rozental ouviu um estalo seco e forte, como se algo tivesse se rompido. Instintivamente, aliviou a pressão, e esse gesto lhe custou caro. “Eu fui apertando, o braço dele foi envergando ao contrário, até dar um estalo muito forte, que foi ouvido fora do tatame. Quebrou …  Eu parei … fiquei vulnerável, ele continuou, pegou a minha gola por trás, com a outra mão, direita, e me finalizou no estrangulamento. A narrativa fantasiosa dele no livro beira o fantástico. Após o braço dele envergar ao contrário, ultrapassar a possibilidade de resistência e “quebrar”, não haveria como ele “liberar o braço”, se eu não soltasse a chave.  Foi a única vez em que fui finalizado, desde o primeiro campeonato de 1973, seja em competição ou mesmo em treinos de academia.” A experiência, embora dolorosa, se tornaria uma das lições mais marcantes de sua trajetória no Jiu-Jitsu: “Aprendi que parar uma luta pode me custar a vitória. Nunca mais nos enfrentamos.” Esse tipo de aprendizado marcaria não apenas a trajetória de Rozental nos tatames, mas moldaria sua maneira de enfrentar desafios ao longo de toda a vida com coragem e a consciência de que até mesmo gestos de compaixão podem ter um preço alto na arena da competição. Apesar do desfecho oficial favorável a Rickson, Rozental destaca que a memória do combate foi distorcida, e que os relatos posteriores não correspondem ao que de fato aconteceu naquele tatame no ano de 1975. Trata-se, para ele, não de uma disputa de versões por vaidade, mas de uma defesa da verdade histórica, para que os fatos, e não as narrativas reescritas ao longo do tempo, prevaleçam na memória do Jiu-Jitsu. Indagado sobre por que nunca mais voltou a se confrontar com Rickson Gracie, Rozental respondeu que simplesmente não se cruzaram mais em torneios. Ele explica que continuou competindo ativamente e vencendo diversos campeonatos ao longo dos anos, até 1980, mas que Rickson não participou desses eventos. Entre os campeonatos que Rozental destaca estão: o Clube Montanha, em 1974, onde competiu como faixa laranja em duas categorias, peso e absoluto; o Montanha Tênis Club, em 1976, já como faixa azul; o tradicional Clube Mello, em 1978, na faixa roxa; e, por fim, o Clube de Regatas do Flamengo, em 1980, já como faixa marrom.

A LIÇÃO DA DERROTA PARA RICKSON 

A trajetória de Fernando Rozental, marcada por talento precoce e por vitórias emblemáticas, revela um capítulo até então ofuscado da história do Jiu-Jitsu brasileiro. Seus embates com Rickson Gracie nos primórdios dos campeonatos oficiais, incluindo a finalização amplamente reconhecida, mas não oficialmente registrada, desafiam as narrativas oficiais e nos convidam a uma revisão crítica da memória construída em torno da arte suave. Lendas reunidas nos primórdios dos campeonatos oficiais da década de 1970. Final do 1º Campeonato Oficial de Jiu-Jitsu, realizado em 1973, no ginásio do Botafogo Futebol e Regatas. A imagem captura uma cena histórica: Mestre Carlson Gracie no lugar mais alto do pódio, ladeado por Mestre Francisco Mansur (à esquerda), e pelos mestres Monir Salomão e João Alberto Barreto. Mais do que uma simples cerimônia de premiação, essa foto simboliza um momento decisivo para o Jiu-Jitsu nacional. A presença reunida de verdadeiras lendas da arte suave nos primeiros campeonatos oficiais representa um marco na consolidação do Jiu-Jitsu como expressão técnica, esportiva e cultural do Brasil. Uma era de pioneirismo, na qual tradição e competitividade lançaram as bases para o que viria a se tornar uma arte marcial reconhecida mundialmente. Rozental finalizando mais uma luta em 1980, com a mesma precisão que marcou sua trajetória. Após aplicar sua queda preferida, o gancho por fora (O soto gare), emendou rapidamente um estrangulamento pelas costas, executado com firmeza e sem hesitação. Desta vez, havia aprendido a lição da última luta contra Rickson Gracie, não abandonou o golpe, nem aliviou a pressão ao perceber uma tentativa sutil de desistência. 

REUNINDO A VELHA GUARDA 

Com preparo físico limitado, mas confiança na técnica, manteve o estrangulamento até levar o oponente à inconsciência. O adversário era o Índio (Mário), respeitado professor da tradicional academia Kioto, fundada por Mestre Francisco Mansur, uma das figuras mais influentes da história do Jiu-Jitsu brasileiro. A luta evidenciou, mais uma vez, o estilo implacável e eficaz de Rozental no auge de sua forma competitiva. Ao longo de nossas conversas, que foram muitas, Rozental expressa com orgulho sua profunda ligação com a origem da linhagem Carlson Gracie. Mais do que ser um dos primeiros faixas pretas formados diretamente pelo mestre, ele se orgulha de fazer parte de uma família técnica que permanece unida após 50 anos. Mesmo longe dos holofotes, Rozental nunca se afastou completamente do Jiu-Jitsu. Rozental segue trocando ideias, experiências e técnicas com lutadores de diversas gerações, mantendo viva a essência do Jiu-Jitsu com humildade, curiosidade e espírito de aprendizado contínuo: “Estamos sempre aprendendo, e ainda escrevendo a nossa história …” Atualmente, Rozental continua lembrando, entendendo, aprendendo e aperfeiçoando as técnicas e finalizações que desenvolveu e aplicou com êxito, muitas delas pouco conhecidas do público atual. Como ele mesmo afirma, são técnicas simples, muito simples, mas extremamente eficazes. Tão simples que, segundo ele, é necessário explicar o contexto histórico em que foram aplicadas para que não pareçam banais.  Para compartilhar esse valioso acervo técnico, acompanhado, é claro, de muitas histórias, Rozental está organizando um evento especial voltado à “velha guarda” da equipe Carlson Gracie e seus discípulos, em um esforço de preservação e transmissão de um legado que ajudou a moldar o Jiu-Jitsu como o conhecemos hoje. “Tenho orgulho e satisfação de ter participado do início da Família Carlson Gracie, que continua unida após 50 anos”, declara.  “As técnicas eficazes e surpreendentes de finalização são eternas e valiosas, independente de o Jiu-Jitsu ter evoluído ou involuído com o tempo.”

Durante todos esses anos, Rozental preferiu o silêncio. Nunca buscou fama, nem se envolveu em disputas de ego. Sua trajetória foi construída com disciplina e muito trabalho, sempre guiado por um compromisso genuíno com a arte suave. Contudo, resgatar sua história não é um ato de vaidade, mas sim de justiça histórica. É reconhecer, valorizar e dar nome, rosto e voz àqueles que estiveram na base da formação técnica e competitiva de gerações seguidas, inclusive daqueles que, mais tarde, se tornariam verdadeiras lendas do Jiu-Jitsu brasileiro.