UFC 9: Rivalidade Brasil x EUA, jeitinho brasileiro e surra fotográfica

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Confraternização entre Severn e Shamrock após o evento

É natural que o primeiro UFC seja uma experiência marcante para qualquer jornalista, mas eu tenho que reconhecer que este meu primeiro Ultimate foi bem além disso. Além da surpreendente derrota do fenômeno da Carlson Amaury Bitetti para Don Frye diante de uma ensurdecedora torcida americana, testemunhei o desconhecido aluno de André Pederneiras, Rafael Carino, salvando a noite brasileira, a revanche entre Shamrock e Severn, um campeão olímpico sendo convidado para lutar nos corredores do hotel e, de quebra, ainda levei uma surra fotográfica inesquecível. Nesta 7º edição do baú trago estas e outras lembranças dos bastidores daquele dia 17 de maio de 1996 em Detroit, Michigan, há 24 anos.

Menos de um mês depois de acompanhar uma seleção de oito brasileiros lutando contra o resto do mundo no UVF 1 em Tokyo e testemunhar uma goleada brasileira (6×2), fui a Detroit nos EUA cobrir meu primeiro UFC (9), onde lutaram os brasileiros Amaury Bitetti e Rafael Carino.

Com a saída de Rorion e Royce na 5º edição, o show inicialmente concebido para comprovar a superioridade de uma modalidade sobre outras, foi comprado pela SEG (Semaphore Entertainment Group), que passou a ter como principal foco as vendas de pay per view.  Ou seja, não havia mais como fazer lutas sem limite de tempo.

Nesta 9º edição, pela primeira vez, tentou-se abolir o formato torneio, fazendo um evento de seis lutas casadas.  Curiosamente a forte campanha anti-NHB (No Holds Barred), que boa parte da classe política fazia contra o UFC, acabou ajudando a alavancar as vendas do show. Não por acaso o ginásio Cobo Arena lotou com quase 12 mil pessoas. E o pay per view atingiu a casa dos 300 mil pacotes vendidos.

Lembro que pude sentir a febre do Jiu-Jitsu nos EUA assim que entrei no lobby do hotel dos lutadores em Detroit e avistei um festival de camisas de Jiu-Jitsu: Gracie,  Rickson, Machado Brothers, Pedro Sauer. Curiosamente, mesmo sem vencer desde o UFC 7 (com Ruas), os brasileiros eram sempre favoritos. Por outro lado aumentava a torcida americana que não suportava mais ver brasileiros vencendo em seu território. O clima de Brasil x USA era forte nos bastidores. Isso acabou ficando ainda mais claro pelo fato de eu estar vindo de uma cobertura no Japão (pré era Pride) onde a torcida era totalmente silenciosa, chegando a aplaudir os lutadores brasileiros quando estes venciam os locais. Nos EUA a atmosfera era absolutamente distinta e isso ficou patente na entrada de Don Frye e para enfrentar Amaury Bitetti sob os gritos ensurdecedores de  USA ! USA ! USA ! emanados por 12 mil torcedores que transformaram a Cobo Arena numa espécie de “Bombonera” do NHB.

CHOQUE DE REALIDADE

Faixa preta de Judô, Jiu-Jitsu e campeão de Boxe e Muay Thai sendo por isso apontado por muitos como faixa preta mais técnico de Carlson Gracie no Vale-Tudo, Amaury Bitetti com apenas (1,73m 85kg), teve a indigesta tarefa de fazer sua estréia no UFC contra, Don Frye (1,85m/95kg).

Amaury, cuja última luta havia sido o nocaute para mestre Hulk um ano antes, enfrentaria o campeão do UFC 8, que há dois meses tratorizara três oponentes em menos de 3 minutos.

Lembro que, ao lado do octagon, podia perceber o nervosismo de Amaury que chegava a babar andando de um lado para o outro enquanto Frye de braços cruzados sorria para o carioca.

Assim que o juiz Big John proferiu o seu “Let´s Get it On” Amaury partiu para cima do oponente com ímpeto, aplicando um pisão e tentando cinturá-lo junto a grade. Mas Frye usou seu Wrestling para deixar o brasileiro fazer força e cansar tentando derrubá-lo. Quando percebeu que o faixa preta de Carlson já dava sinais de cansaço, Frye o soltou e partiu para a trocação. Amaury acertou o primeiro, mas foi logo contra-atacado com dois potentes golpes, sendo derrubado pelo americano, que, após acertar alguns socos ainda tentou passar sua guarda. Amaury levantou e, de pé novamente, voltou a levar desvantagem. Enquanto a torcida gritava sem parar: USA ! USA ! o brasileiro absorvia um direto, dois cruzados e três joelhadas até cair fazendo guarda tentando se defender de uma chuva de socos e cotoveladas do americano

A luta foi interrompida para os médicos analisarem o sangramento do brasileiro, mas Amaury queria mais. Quando o combate foi reiniciado, Bitetti, que já parecia nocauteado em pé desde o cruzado no queixo que levou nos primeiros minutos de luta, lutava no automático. Enquanto isso, Frye, mesmo já estando bastante cansado, o punia em pé e novamente de dentro da guarda. Já bastante cansado, sangrando muito e sem esboçar reação, Amaury viu Big John interromper o combate a 9min22s. “O Amaury é o lutador mais guerreiro que já vi aqui no UFC, mesmo perdendo não parava de atacar e não desistiu. Espero que continue a lutar”, me disse Big John ao sair do octógono.

“Com um minuto de luta percebi que ele não era tão bom quanto imaginava. Adoro que me coloquem na guarda é muito cômodo para mim. Agora quero um Gracie . Eles são bons mas tenho certeza que minha técnica é superior”, me disse na época Frye numa festa realizada pelo UFC no hotel logo após a luta.

A bem da verdade esta derrota de Bitetti par Frye e as lutas entre Murilo Bustamante vs Tom Erikson e Fábio Gurgel vs Mark Kerr, em 1997, mostrariam que já era passada a hora de se estipularem categorias de peso, ou seja, transformar aquele confronto entre estilos, que marcava o Vale-Tudo (NHB), num esporte que viria a ser chamado de MMA.

Don Frye e Amaury Bitetti no filme errado

AMAURY BITETI: HOJE EU LUTARIA ATÉ 77KG

Passados 24 anos do confronto com Frye, Amaury Bitetti hoje reconhece a loucura de lutar sem limite de peso. “Foi uma guerra, o Frye era enorme, bom de porrada e wrestling, difícil de quedar, e ainda segurava a grade o tempo todo. Eu queria vencer no 1º round, porque sabia no segundo eu iria cansar, pois vinha de um estiramento no abdomen e tinha tomado infiltração. Não consegui, ele cansou também, mas foi melhor”, lembra Bitetti, que após as derrotas para os bem maiores Hulk e Frye, conquistou três vitórias seguidas lutando em seu peso. “Venci o Maurice Travis, o Alex Andrade no UFC, e o Dennis Hallman, que tinha acabado de finalizar Matt Hughes duas vezes no UFC”. Amaury revela que se lutasse hoje estaria na divisão dos meio médios. “Hoje seria bem mais fácil, tem regra, divisão de peso, e na minha época não tinha nada disso, era porrada. Hoje eu lutaria de 77kg”

CARINO CALA AMERICANOS E AINDA GANHA CAPA

Se a derrota de Amaury fez explodir a torcida americana, o faixa marrom de André Pederneiras, Rafael Carino (1,97m/113kg), que na época só tinha 23 anos de idade, calou a Arena de Detroit na luta preliminar. Seguindo os conselhos do mestre que fazia seu córner ao lado de Vitor Shaolin, Carino só precisou de 5min32s minutos para derrubar e montar e obrigar Matt Anderson (1,89m/105kg) a desistir com socos na guarda.

Num momento em que os faixas pretas mais experientes disputavam acirradamente a possibilidade de sair na capa dos dois principais veículos, Tatame e Gracie (na época ainda em formato de jornal), aquele faixa marrom de apenas 23 anos estava no lugar certo e na hora certa. Salvou a nossa cobertura e me proporcionou uma boa imagem (socos na montada) e acabou virando capa da primeira revista Tatame.

Pederneiras, Rafael Carino e Marcos Jara

SEVERN VENCE REVANCHE COM SHAMROCK

Depois de conseguir empatar com Royce no UFC 5, numa luta de 36 minutos, Ken Shamrock acabou se beneficiando com a saída do Gracie do show logo após esta edição (Rorion não aceitou a limitação de tempo imposta pela TV e decidiu vender sua parte do show).  Mesmo nunca tendo vencido um torneio do UFC, Ken ficou como detentor do cinturão de super fighter, botando o titulo em jogo em 4 oportunidades e vencendo todas elas. Primeiro Severn (UFC 6), depois Taktarov (UFC7) e depois Kimo (UFC8). Mas com a vitoria de Severn no primeiro Ultimate Ultimate, quando passou por Paul Varelans, Tank Abbot e Taktarov na mesma noite, o wrestler conquistou o direito a revanche. E ela ocorreu como super luta do UFC 9.

Ao contrário da primeira luta quando Shamrock só precisou de 2minutos para finalizar “A besta” com uma guilhotina, desta vez a luta transcorreu 30 longos e monótonos minutos. Ao contrário do duelo de grapplers que todos esperavam o que se viu foi uma luta de dois trocadores de tapa. No finalzinho Dan Severn levou Shamrock para o chão, mas este conseguiu raspar e caiu montado e assim permaneceu por alguns minutos. Severn conseguiu sair e caiu novamente por cima passando o último minuto da luta socando de dentro da guarda de Shamrock, que foi salvo pelo gongo. Na prorrogação mais 3 minutos de troca de tapas e os juiz resolveram dar a vitória a Severn.

CAMPEÃO OLIMPICO E JEITINHO BRASILEIRO

No Brasil, até os dias de hoje, ouvimos histórias de eventos pequenos que salvam o card convidando lutadores no dia da pesagem. Existem até relatos de eventos que convidaram lutadores na platéia na hora do show.

No UFC 9 acompanhei algo parecido acontecendo. Dave Beneteau, que deveria enfrentar o vice campeão do UFC 8, Gary Goodridge, se machucou um dia antes da competição. E os organizadores recorreram ao famigerado jeitinho brasileiro para resolver a situação. Ao saber da vaga, o faixa preta de Rickson Gracie, Pedro Sauer, que estava no mesmo hotel dos lutadores com seu aluno, o bi-campeão olimpico de Wrestling Mark Schultz, sugeriu seu nome aos promotores.  O pessoal da SEG, interessado em catapultar as vendas pay-per view,  adorou a idéia. A fama de Schultz nos EUA lhe rendeu uma irrecusável proposta: 50 mil para fazer uma única luta.

Nos bastidores Sauer me confessou “Aposto contigo que ele vai dar um pau neste Goodridge. O Cara é tão duro que o Rickson só conseguiu finalizá-lo três vezes em trinta minutos de treino, isso sempre por baixo”, me disse o faixa preta que na época residia na Califórnia.

Dito e feito. Mesmo sendo 20kg mais leve, Shultz derrubou Goodridge três vezes dominando a luta toda e terminando montado e batendo. Graças a excelente atuação e a mãozinha que deu para catapultar as vendas de pay per view, Mark acabou embolsando o dobro do combinado: US 100 mil.

A diferença de peso também marcou outra luta do card.  Mark Hall (1,83m-86kg) só precisou de 40 segundos para quebrar o nariz do gigante do Sumô Koji Kitao (2m/170kg), que um mês antes do evento havia perdido para o brasileiro The Pedro no UVF Japan. O sangramento abundante no nariz do japonês levou os promotores, já preocupados com a visão do esporte na TV, a interromperem o combate.

No outro combate Call Worsham (1,80m/90kg) depois de derrubar o karateca Zane Frazier (1,98kg/97kg) o obrigou a desitir a 3min14s com socos e cabeçadas.

Apesar das excelentes vendas pay per view o formato de lutas casadas não agradou o público e na edição seguinte a SEG se veria obrigada a retornar ao formato torneio consagrando Mark Coleman como novo campeão ao vencer Don Frye na final do UFC 10.

INFERNO FIGHTING CHAMPIONSHIP

Num evento marcado por tantas surpresas e fortes emoções dentro e fora do octógono, acabou sobrando uma surra até pra mim.

A poucas horas do evento enquanto arrumava meu equipamento, meu amigo e parceiro de quarto, Susumu Nagao reclamava da dificuldade de conseguir o Ektachrome 320 T em Tokyo e me perguntou como era no Brasil. Quando eu disse que nunca tinha visto aquele filme Susumu soltou o clássico japonês “oooooohhhhhhhhhhhhh”. Na seqüência o mestre me explicou que ao contrário do evento que havíamos acabado de cobrir no Japão, onde a temperatura de cor da luz “puxava para o azul”, a temperatura de cor no UFC puxava muito para o vermelho e não me permitiria usar um slide normal (daylight) como usei no Japão. O correto seria usar o Ektachrome 320 e puxar três pontos na hora da revelação em um laboratório profissional. Aquela altura não tinha mais o que fazer até porque Nagao me informou que eu só encontraria aquele filme numa loja profissional em Nova York.

Resultado: surra fotográfica ! Quando revelei meus slides Amaury Bitetti e Rafael Carino pareciam estar lutando para o “sete peles” nas entranhas do Inferno Fighting Championship. Sensibilizado com a surra do amigo, mestre Nagao se colocou a disposição para me ceder algumas fotos, mas, por sorte, ainda tinha levado alguns negativos que salvaram a capa da Tatame e algumas fotos da Superfight.

Foi neste dia que compreendi a máxima do mundo da luta “É na derrota que aprendemos mais”. Definitivamente foi o que aconteceu comigo. Após esta surra fotográfica nunca mais viajei para um UFC sem uma caixa de 320 T na bagagem. Além de encarecer as coberturas em quase 40% (na maioria das vezes gastava mais com filme e revelação que em hotel) este cromo era dificílimo de operar principalmente na revelação em laboratório (na hora da revelação eu perdia em media 60% do material), mas era a nossa salvação.

É por estas e outras que sempre lembro os colegas fotógrafos, que não viveram a era analógica a erguerem as mãos para os céus sempre que forem usar suas câmeras digitais e, acima de tudo, pensarem bem ao cogitarem apontar algum GOAT (maior fotógrafo de MMA de todos os tempos), que não seja o japonês Susumu Nagao.