26 de junho de 2010. Há exatos 14 anos Fabricio Werdum calava o mundo ao finalizar Fedor Emelianenko em apenas 69 segundos, naquela que durante muito tempo foi considerada a maior zebra da história do MMA.
O distanciamento temporal nos impede de mensurar com precisão o que significava Fedor Emelianenko até aquele momento.
Campeão do Pride, Rings e Strikeforce, o russo tinha feito até então um total de 33 lutas, só tendo uma derrota e um no contest no currículo por conta de cortes causados por golpe não intencionais (contra Kosaka e Minotauro) que levaram a interrupção dos combates.
O fato é que entre Maio de 2000 e aquele junho de 2010, Fedor enfrentou os maiores nomes de sua geração e sempre saiu vencedor, na maioria das vezes de maneira dominante. A ponto de os fãs já irem para a arena ver de que maneira ele venceria.
Aliás foi exatamente esta veneração dos fãs que me impressionou quando cheguei a HP Pavillion em San Jose naquela tarde do dia 26 de junho e vi uma arena quase lotada por fãs americanos, em sua maioria vestido de vermelho. A torcida de Werdum se restringia basicamente aos brasileiros que moravam na California.
Lembro que fiz questão de conversar com alguns americanos para tentar entender como um ícone russo podia causar tanta veneração e o depoimento de um deles resumiu bem a situação. “Sempre invejei quem pode assistir GOAT`S como Michael Jordan, Mike Tyson, quem está aqui hoje veio ver a história ser escrita pelo maior lutador de MMA de todos os tempos. Não importa se nasceu na Russia, Brasil ou EUA. Fedor e uma lenda. A curiosidade e ver como ele vai vencer” me disse o vendedor de carros Bryan Rodriguez, na fila, para comprar uma camisa do ídolo para o filho.
A tranquilidade da esmagadora maioria dos torcedores que lotaram a HP Pavillion naquela tarde era motivada ainda pelo momento que o brasileiro passava.
Após ser nocauteado por Junior Cigano (derrota que lhe valeu a demissão do UFC em 2008), Fabricio tinha 19 vitórias e 4 derrotas e começava um lento processo de recuperação no Strikeforce, tendo finalizado Mike Kyle no 1º round e vencido Antônio Pezão por pontos.
Mas não fui o único jornalista brasileiro a se despencar pra Califórnia cobrir este evento por acaso. Por ter acompanhado toda a trajetória de Werdum desde a faixa roxa, sempre reconheci nele três características de um campeão: talento, dedicação e estrela. Seja se internando sozinho na Croácia por um ano para aprender Kickboxer com Mirko ou morando nos fundos da academia Chute Boxe, nocauteando o temido Ebenezer num péssimo casamento em sua segunda luta no Jungle ou conquistando dois pódios quando chegou no ADCC em 2003 como corner de Mark Kerr e foi chamado para substituir Rico Rodrigues. Algo me dizia que este gaúcho chegaria longe. “Sei que muita gente acha que sou zebra, mas estou na melhor forma da minha vida e vou ganhar. Pode anotar, Alonso”, me disse Werdum ao me ver chegando ao hotel no dia anterior a luta. E O clima de confiança era compartilhado pelos treinadores Rafael Cordeiro, Octávio Couto e Renato Babalú. Só me chamava atenção a quantidade de gente no backstage de Werdum. Para se ter ideia, na noite anterior à luta, cheguei a contar 11 pessoas no quarto em que o gaúcho deveria estar se concentrando. “Odeio silêncio, a melhor concentração para mim é estar conversando e rindo com os amigos”, me explicou Werdum, apresentando, um a um, todos do time. Para meu espanto, entre treinadores, amigos de Porto Alegre, parentes e um massagista, estava o ator americano Forest Whitaker (vencedor do Oscar de melhor ator em 2006 pelo filme Último Rei da Escócia), segundo Werdum, o melhor amigo de seu massagista.
Assim que a luta começou, Fedor aplicou um knock down no brasileiro e partiu para definir o combate com seu temido ground n´ pound de dentro da guarda. Werdum aproveitou que o corpo do campeão ainda estava seco e aplicou um triângulo indefensável. Fedor tentou escapar e acabou cedendo o braço, batendo num ataque duplo a 1min09s. Enquanto a arena silenciava, o brasileiro promovia um verdadeiro carnaval, que se estenderia noite afora pelas ruas de San José, numa das mais divertidas comemorações que já vi. Ciente do tamanho de seu feito, Werdum dançou, cantou, desfilou com os amigos e se deu ao luxo até de tomar o maior porre de sua vida, deixando para mim e seu treinador de Jiu-Jitsu Octávio Couto, ambos medindo 1,70m, a árdua tarefa de desovar aquele gigante no quarto, segurando um balde à beira da cama enquanto ele vomitava. No dia seguinte voltei para Los Angeles com Werdum e ainda passei 24 horas come ele em sua casa, onde fiz a reportagem que seria capa da oitava edição da PVT Mag. A qual republicamos abaixo.
Werdum, e o triângulo que mudou a história do MMA
Faixa-preta formado por Sylvio Behring e com uma coleção de títulos importantes como o Mundial de Jiu-Jitsu e o ADCC, Fabricio Werdum conseguiu no dia 26 de junho um feito até então considerado impossível: finalizar Fedor Emelianenko. O combate durou apenas 69 segundos, e o brasileiro usou uma de suas armas favoritas para desbancar o até então imbatível russo, o triângulo. Depois de brilhar em competições de Jiu-Jitsu e Submission, Werdum já lutou no Pride e no UFC, onde saiu após uma derrota para o então estreante Junior Cigano. “Nesta hora que aparecem os verdadeiros campeões. Com tudo que aconteceu ele ainda era o primeiro a chegar nos treinos. Venceu duas pedreiras e conquistou o direito de enfrentar o Fedor. O Fabrício é hoje um exemplo para mim e todos os brasileiros”, definiu o amigo Wanderlei Silva.
Logo após escrever um dos mais importantes capítulos da história do MMA, Werdum nos recebeu em sua casa em Marina Del Rei para um longo bate-papo
O sonho de enfrentar Fedor
Desde a época do Pride, meu irmão me falou que eu iria ganhar do Fedor, mas naquele tempo eu pensava que não era possível. Eu estou treinando com o Rafael Cordeiro há três anos e isso já fez muita diferença. Qual lutador peso pesado ou até de outro peso que não queria lutar com o Fedor e ganhar?
A tranquilidade de Fedor
A tranqüilidade que eu estava foi ele quem me passou. Não foi aquela tensão de antes, de ficarmos nos olhando de cara feia. Se fosse com o Overeem de repente fosse acontecer isso, pois nós não nos damos muito bem.
A aposta de Wand
Ele disse que acreditava na minha vitória num vídeo antes da luta. Até me emocionei, sabe quando a garganta chega a secar? O Wanderlei é o ídolo de todo brasileiro. E hoje é um grande amigo. Vindo dele, do jeito que ele falou, e eu vi que foi uma coisa verdadeira, deixou-me extremamente feliz.
A união da equipe
O lutador sozinho não faz nada. Não tem como fazer uma luta de uma importância como essa e não ter uma equipe e uma estrutura por trás. Tem que ter o professor de jiu-jitsu (Ratinho), de wrestling (Eugênio) e o coach que organiza o treino de MMA (Rafael Cordeiro). Todo mundo tem de estar em sincronia nos treinamentos. Agora eu me encontrei 100% com a nossa equipe. Antigamente era cada uma com sua equipe e se olhasse para o lado era expulso da academia. Hoje em dia a palavra Creonte não existe mais. Se você não treinar com caras de outras academias acaba ficando para trás.
O melhor treinador do mundo
Eu sei do potencial que o Rafael tem e que ele é o melhor do mundo. Todo mundo que já treinou com ele gostaria que ele também fosse reconhecido. Em três anos que eu estou treinando com ele, eu nunca vi um treino igual ao outro. Ele não é aquele mestre que impõe respeito, ele conquista. Ele é impressionante, não só como mestre, mas como amigo também. Hoje ele e Babalú são meus melhores amigos.
Octavio Ratinho
O Ratinho me pegou agora, estou com ele há somente dois meses. Então, ele não ia ter tempo de mudar meu jogo. Por isso, ele chegou para mim e disse “eu vou ajustar as posições que você já tem. Me mostra o que você gosta de fazer que eu vou te ajustar”. Além de ajustar ele fez um trabalho de tanta repetição que as posições estavam saindo automaticamente.
A descontração nos bastidores
Meus amigos que vieram fizeram muita diferença. O tempo que a gente passava junto estávamos sempre rindo e deixávamos alegria por onde passávamos. Comigo não tem aquele negócio de deixar o lutador sozinho no quarto se concentrando. Isso já ocorreu quando lutei no Pride, mas eu não gostei. Eu gosto de ficar ali brincando, a galera se divertindo e um rindo do outro. Isso é legal, pois me deixa tranqüilo e não pensando o tempo todo na luta. No final a gente fez tanta festa que até o Forrest Whitaker, que veio me cumprimentar no vestiário, entrou na dança.
O resgate do Jiu-Jitsu
Treinei tudo que é finalização, mas o triângulo não era nossa primeira opção. Nossa maior preocupação era não perder posição e oportunidade. Eu fui naquela ali de uma maneira que eu não podia perder, ainda mais que eu estava seco, o que me ajudou muito também. Aquele momento onde todos pensaram que eu caí, de repente, no meu subconsciente, eu já queria ir para o chão e então não fiz muito esforço de ficar em pé. Eu me desequilibrei e caí naturalmente. Se você ver a luta, o soco pegou no peito e eu caí consciente.
Realizações no esporte
Eu sempre tive o objetivo de ser campeão mundial de Jiu-Jitsu, consegui isso duas vezes. O ADCC eu ganhei duas. Agora, eu consegui realizar outro sonho que era ser campeão em cima do cara que era o cara, o Fedor. Faltou o cinturão na cintura, mas pra mim é como se valesse muito mais. O Fedor vale por um monte de cinturões, ou um grandão (risos).
15 mil por mês
Tu imaginas como estava sendo pra mim há um ano, quando eu perdi aquela luta para o Cigano e mudou tudo. Eu tinha um contrato com o UFC e o perdi porque não aceitei que eles baixassem minha bolsa e não teve acordo. Eu resolvi vir para cá pelo fato também de o Rafael ter vindo. Lá estava ruim para mim, pelo fato de a Karine e a Júlia estarem em Porto Alegre e eu em Curitiba a semana inteira. Todo final de semana eu tinha de pegar avião, era cansativo, além de eu gastar muito dinheiro. Eu gastava em torno de uns 15 mil por mês, era casa Porto Alegre, casa em Curitiba, além de ter de bancar dois carros pelo menos.
O lado bom da derrota
Depois eu decidi vir para cá sem contrato, cheguei aqui sem nada certo. E então fechei com o Strikeforce. O Richard fez um contrato razoável, mas nada que eu estivesse esperando, mas eu pensei em aceitar, para no futuro colher os frutos. Eu fui na insistência mesmo, treinei muito e o Rafael junto comigo ficamos oito meses só nessa, sem contrato. Só depois que eu consegui o contrato que eu fui lutar com o Mike Kyle. A partir daí foi 100%, já que eu consegui manter os treinamentos com o Rafael. Eu morava numa casa que ficava a cinco minutos da academia dele e isso facilitou bastante. Deu tudo certo. Para você ver como são as coisas, agora que passou um ano, eu já lutei com o melhor do mundo e ganhei do cara. Foi uma reviravolta muito grande na minha vida. Isso em somente um ano.
Mágoa com o UFC
Eles meio que me usaram e jogaram fora. É complicado esse esquema do UFC. É difícil de entender que os caras terminem seu contrato depois de vencer bem duas lutas, mesmo que seja porque você perdeu uma e não importa como foi. Eu penso que o negócio é business mesmo e não tem essa de frescura. O negócio funciona assim, não agradou está fora. É claro que ficou um pouco de mágoa, mas como tem de ser profissional com todo mundo, eu não posso partir para o lado pessoal. Se você for para esse lado, você pode acabar se dando mal, então é melhor manter o profissionalismo.
Momento mais marcante
O momento mais irado, tirando essa vitória sobre o Fedor, porque essa não tem comparação com nenhuma, foi o ADCC em Barcelona. Tinha uma galera, com mais de 60 alunos, todos eles com camiseta e fazendo uma grande torcida organizada por mim. Eu lutava, pulava o alambrado e puxava a torcida da galera pelos meus amigos. Vencer assim foi demais.
Momento mais difícil
Foi a derrota para o Cigano. Essa foi a parte mais difícil da minha carreira, até porque nunca tinha acontecido comigo. Eu nunca tinha sido nocauteado na vida. Foi uma porrada que eu não vi nada depois, então foi muito forte. Com certeza foi a pancada mais forte que eu já tomei na minha vida. Foi uma crise, mas que bom que ela passou rápido. Até porque eu me recuperei rápido, pois se fosse um cara mal de cabeça ou meio fraco, deixaria cair a peteca.
Aposentadoria
Eu não tenho uma previsão. Se for pensar nos treinamentos e em todo esse tempo de dedicação, dá vontade de parar toda hora. Por ser esse treinamento intenso, de ter de ficar insistindo o tempo todo, cancelar luta, o dia-a-dia que é muito cansativo, aquela coisa de você estar exausto, mas ter de treinar, é isso que mata. A luta em si, eu tenho certeza que todo mundo, lutador mesmo, lutaria até quatro lutas numa noite. Tenho certeza que todos têm condições de lutar isso. O mais difícil mesmo é o dia-a-dia. Às vezes as pessoas não sabem e só vêem na internet e nos vídeos, mas não tem idéia de como é o cotidiano de um lutador.
O melhor peso por peso
O Fedor é o cara. Um lutador incrível. Se eu fui melhor que ele, foi naquela noite. Apesar disso, eu continuo o considerando o melhor e não tem como não ser assim. Não dá para apagar toda história dele por uma derrota. Ele ficou dez anos sem perder. O cara é muito bom e tem muita noção de luta. Agora as pessoas podem querer encontrar todos os defeitos no cara, dizer que era barbada e que sabia, mas não é bem assim. Todo mundo sabia o jogo do cara o tempo inteiro, mas ninguém conseguia ganhá-lo. Todos sabem que o Fedor dá o direto e depois o cruzado ou o cruzado direto. O melhor dele é a mão, ele não chuta, tem um ótimo chão e todos sabiam disso. Foram dez anos fazendo a mesma coisa e ninguém conseguia parar o cara. Também gosto muito do King Mo
O futuro
Agora é aproveitar bastante e buscar ser inteligente para utilizar essa situação com intuito de promover o meu nome. Existem algumas prioridades, por exemplo, que é operar o meu braço, já que eu estou com uma epicondilite. Isso atrapalha muito nos meus treinos e se de repente um cara pega meu braço em um arm-lock, ia ficar complicado, porque me dói muito. Agora eu vou operar, porque já adiei diversas vezes. Estou assim a dois por dois anos, dizendo que ia operar depois das lutas e nada. Acho que agora é o momento. Irei fazer uma série de seminários na Europa para aproveitar o momento, e depois opero, já pensando na próxima luta.
WERDUNCIONÁRIO
Conhecido por seu bom humor, Fabrício Werdum costuma falar um dialeto próprio misturando seu gauches com gírias produzidas em casa. Segue abaixo uma lista das mais usadas pelo figuraço
DOS DEZ MAIS TRI – Muito bom
DOS NOSSOS – amigo, parceiro
GRANDÃO – Ta metido convencido.
CÚ DE CACHORRO – Puxa saco
SEVEN – 171, Mentira
ROSCÃO – Homossexual
QUERIDO – Órgão sexual masculino
LARGAR UM QUERIDO – defecar
Fedor lamenta: “Confiei demais em mim”
Abatido após ser finalizado por Werdum, Fedor mostrou que não é admirado por fãs de todas as nacionalidades por acaso. Na entrevista coletiva após o evento o russo deu show de humildade e em nenhum momento tentou diminuir a conquista do brasileiro. “No começo do round, eu acertei o Fabrício e tentei acabar com a luta o mais rápido possível, mas naquele exato momento eu cometi um erro”, relembra, “Com certeza houve momentos em que eu poderia ter escapado, mas eu confiei demais em mim mesmo e paguei por isso. No exato momento que eu tinha pra escapar, eu parei. Não escapei e esse foi o momento usado pelo Fabrício para finalizar”.
Fedor lamentou ainda ter desapontado sua torcida, mas promete voltar melhor em sua próxima luta.
“Todo mundo perde, isso acontece”, disse, “Eu sinto muito e é uma pena eu ter desapontado as pessoas que realmente acreditavam e confiavam em mim, mas tudo nessa vida acontece por alguma razão. Eu tentei trabalhar motivado para vir para essa luta na melhor forma possível e a luta hoje me mostrou que eu talvez não tenha trabalhado o suficiente. Não fui capaz de fazer toda minha técnica se tornar automática, e isso significa que tenho que trabalhar mais. Vou treinar e voltar melhor seja com o Werdum ou com quem me colocarem”, prometeu o russo.
Nos anos susequentes, Werdum voltaria ao UFC mostrando em diversas lutas que o papel de zebra não lhe cabia mais. Foi assim quando finalizou o ídolo Minotauro, em 2013, quando nocauteou o campeão do K-1 Mark Hunt em 2014 e quando finalizou o campeão Cain Velásquez em 2015, faturando o título de campeão peso-pesado do maior evento do mundo, sendo o único peso pesado a conquistar a chamada tríplice coroa: UFC, ADCC e Mundial de Jiu-Jitsu.