Maracanazo e calote de 1 milhão marcam volta do vale tudo ao Rio

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Se você acompanha o MMA há alguns anos certamente já ouviu falar de algum “empresário empreendedor” que surgiu do nada prometendo realizar um evento para superar o UFC. Em 3 décadas cobrindo este esporte, infelizmente, tive o desprazer de conhecer dezenas deles, mas nenhum com tamanho potencial destrutivo quanto Carlos Alberto Scorzelli.

Em 1995, momento de franca recuperação econômica, quando o Brasil começava a colher internacionalmente os frutos do plano real, o diretor da Azagaia Propaganda e Promoções LTDA caiu de paraquedas no mundo da luta prometendo realizar um super evento, chamado Desafio Internacional reunindo os maiores lutadores do mundo em 2 etapas: Torneio nacional (eliminatória brasileira com 8 representantes de modalidades distintas, no dia 23 agosto) e Torneio internacional (com 7 lutadores do mundo todo + o vencedor da etapa nacional), onde o vencedor enfrentaria Rickson Gracie, que havia acabado de vencer duas edições do torneio Japan Open e era considerado o No1 do mundo naquele momento.

APOIO DA PREFEITURA

Para contextualizar vale frisar que o Rio de Janeiro não sediava um grande evento de Vale-Tudo desde o Grajaú em 1991 e Rickson Gracie não lutava na cidade desde sua revanche com Zulu no Maracanãzinho em 1983. A possibilidade de trazer de volta a modalidade tendo como protagonista o maior lutador do mundo naquele momento, fez até a imprensa carioca, tão avessa ao Jiu-Jitsu e VT, passar a dedicar um bom espaço nas páginas esportivas para o Desafio Internacional.

Muito bem relacionado o Sr. Scorzelli acabou trazendo ainda mais credibilidade ao evento ao convidar o respeitadíssimo João Alberto Barreto, principal discípulo de Helio Gracie, para ser diretor técnico do evento. Por intermédio de João Alberto, o promotor chegou a Rickson, que aceitou a proposta e topou vir ao Rio para divulgar o evento na etapa nacional, participando naquela oportunidade de uma reunião com o prefeito César Maia.

O político gostou tanto do projeto que prometeu apoiar o evento, aceitando inclusive posar para a capa do Jornal O Tatame (#5) levando um mata-leão de Rickson. Algo absolutamente inimaginável naquele momento onde a imagem do Jiu-Jitsu era totalmente ligada a pitboys. Estava bom de mais pra ser verdade. E para deixar os fãs ainda mais otimistas na redenção do Vale-Tudo em seu berço, a primeira etapa do evento foi um sucesso.

O MARACANAZO DO JIU-JITSU

Com sua credibilidade junto ao mundo da luta, João Alberto conseguiu trazer grandes nomes de diversos estilos, vindos de diferentes unidades da federação para a seletiva nacional, realizada no dia 23 de agosto de 1995 no Maracanãzinho. Até o lendário Rei Zulu, na época com 53 anos, veio do Maranhão fazer parte da eliminatória, que tinha ainda, The Pedro (Luta-Livre), Mestre Hulk (Capoeira), Fera de Acari (Boxe), James Adler (Kickboxing/Judo), Francisco Nonato (Karate e Jiu-Jitsu), Rostan Lacerda (Karate) e o favoritíssimo Amaury Bitetti (Jiu-Jitsu).

A certeza na vitória de Amaury era tamanha, que antes mesmo dos torneios, a comunidade da Arte Suave só falava do confronto entre Rickson vs Bitetti, que seria uma reedição da rivalidade dos tatames, entre Gracies e Carlson, só que agora nos ringues. Algo que nunca havia ocorrido até aquele momento.  Além de preta no Jiu-Jitsu Amaury era considerado o representante No1 da equipe por ser preta também no Judô e Muay Thai.

A possibilidade de derrota do fenômeno da Carlson na fase nacional do evento não era sequer cogitada. Certeza essa que acabou fazendo alguns torcedores do Jiu-Jitsu, mais ponderados, baterem na madeira ao lembrarem de uma partida de futebol realizada a poucos metros dali há 45 anos, na famigerada final da copa do mundo de 1950 entre Brasil e Uruguai.

Mas a maneira com que Amaury dizimou seus dois primeiros oponentes, só aumentou ainda mais a confiança dos quase 7 mil torcedores do Jiu-Jitsu que lotaram as arquibancadas. Empurrado em sua entrada pelo clássico de Carl Orff, Carmina Burana,  Bitetti fez sua estréia num ringue de Vale-Tudo derrubando, montando e fuzilando Francisco Nonato em 3min57s. Na semifinal o faixa preta da Carlson encarou aquele que teoricamente seria o oponente mais duro do torneio, o kickboxer e faixa preta de Judô maranhense James Adler, que havia nocauteado Rei Zulu meses antes. A fama de pedreira foi confirmada na abertura do torneio quando Adler só precisou de 46 segundos para finalizar o Boxer Fera do Acari com um armlock.

Contra Bitetti, no entanto, o mestre Maranhense sucumbiu a 1min51 com socos da montada.

Enquanto isso do outro lado da chave o azarão mestre Hulk nocauteava o karateca Rostan Lacerda e depois, The Pedro, que vinha de uma improvável vitória sobre Rei Zulú, único lutador que teve o nome gritado por todas as torcidas. Após dominar inteiramente o primeiro round, Zulú cansou no 2º e pediu para o juiz Flávio Behring interromper a luta, colocando The Pedro na semifinal.

Numa repetição melhorada da luta que fizeram, um mês antes, na Ilha dos Pescadores, Hulk desta vez conseguiu definir com socos na montada a 14min43s de luta, tendo só 30 minutos para descansar para a grande final com o favoritíssimo Amaury.

Empurrado pelo clima de já ganhou da torcida do Jiu-Jitsu, Amaury subiu ao ringue para a grande final decidido a trocar golpes com o quase 20kg mais pesado Hulk. E foi depois de uma rápida troca, que Bitetti tentou chutar o capoeirista e perdeu a base, sendo acertado por um cruzado na têmpora, que o levou a lona já desligado. A barulhenta torcida do Jiu-Jitsu silenciou a ver seu representante cair de joelhos recebendo uma seqüência de 12 socos. Claramente incrédulo o árbitro João Alberto ainda esperou a reação do favorito até que intercedeu de maneira tímida ajudando o cambaleante Bitetti enquanto a torcida da capoeira invadia o ringue para comemorar a vitória de seu campeão.

O pessoal do Jiu- Jitsu ainda ensaiou uma volta “no tapetão” mas o próprio Hélio Gracie, mestre de João Alberto Barreto, instruiu o aluno a manter a decisão. Enquanto o Jiu-Jitsu se calava diante do maior Maracanazo da história da modalidade, a torcida da capoeira puxava uma roda com seu novo herói.

seqüência do nocaute de Bitetti publicado pela revista Vale-Tudo

A decepção dos organizadores com a derrota de Bitetti foi tamanha, que tentaram convidá-lo para fazer parte do torneio internacional, mas o faixa preta de Carlson preferiu seguir as regras. “Entrei desconcentrado no clima de já ganhou e perdi, então cumprirei o regulamento, fui vice da fase nacional e vou lutar com o vice da internacional na preliminar da luta do Rickson com o campeão do torneio internacional. Apesar de toda a alegria pela vitória, mestre Hulk preferiu não criar polêmica com a torcida do Jiu-Jitsu. “O Amaury é um grande lutador, mas esta noite eu fui melhor. Agora vou treinar dobrado para representar o Brasil no internacional. Sei que o Rickson é praticamente impossível vencer, mas bem treinado posso surpreender de novo no internacional”

CALOTE DE 1 MILHÃO

O sucesso da primeira etapa repercutiu internacionalmente e a presença de Rickson chancelando o evento motivou lutadores internacionais a participarem da etapa final, que seria realizada em quatro dias (21,22,23 e 24 de outubro).

Scorzelli e João Alberto não conseguiram trazer os já consagrados Taktarov, Shamrock e Kimo, como planejavam, mas de qualquer maneira cumpriram a promessa de trazer 7 representantes, ainda desconhecidos, de diversas modalidades, como o japonês Naoyuki Taira (Karate), o tailandês Bunshima Roong (Muay Thai), o canadense Jean Riviere (Karate Kyokushin), o francês Bertrand Amossou (Jiu-Jitsu),  o iraquiano Mustaq Abdullah (Wrestling), o americano Maurice Travis e o japonês Seiji Yamakawa.

O interesse dos fãs japoneses em verem o maior ídolo da modalidade em ação na grande final motivou a vinda de três profissionais da maior revista japonesa de lutas, a Kakutougi Tsushin.

Mas a confusão começou logo no primeiro sábado (21). Pouco mais de duas mil pessoas se dispuseram a pagar 30 Reais pelo primeiro dia de evento. Mas em três horas assistiram a três preliminares entre lutadores nacionais (James Adler venceu He Man; Marcelo Melo venceu Marcelo Pessoa e Crézio de Souza estrangulou Adauto Soares). Os estrangeiros sequer saíram do hotel Marina Palace, uma vez que os RS 5 mil não haviam sequer sido pagos. Os torcedores exigiram o dinheiro de volta e os promotores prometeram pagar no dia seguinte. Mas no domingo (22) a confusão continuou. A programação estava prevista para começar 17h, passou para 19h e só começou 20h30  quando o canadense Jean Rivierre e Mestre Hulk aceitaram entrar no ringue, mesmo sem receber um tostão. Para piorar Hulk foi nocauteado em 20 segundos e foi direto para o Souza Aguiar onde passou a noite numa maca fria sem nenhum suporte.

Nas outras lutas das quartas de final o tailandês Bunshima Roong (Muay Thai) venceu o japonês o japonês Seiji Yamakawa, o japonês Naoyuki Taira (Karate) derrotou o americano Maurice Travis e o iraquiano Mustaq Abdullah (Wrestling) venceu o francês Bertrand Amossou (Jiu-Jitsu). Mas como não receberam, os lutadores decidiram não voltar para a semifinal no dia seguinte.

RICKSON GRACIE ENVERGONHADO

O irmão de Scorzelli, Carlos Eduardo pagou os lutadores com cheques de uma conta encerrada no Banco do Brasil. Presente no Maracanãzinho Rickson Gracie não acreditou no que viu. Visivelmente constrangido, o bicampeão do Japan Open se limitava a dizer “sem comentário” toda vez que alguém da imprensa buscava um depoimento seu.

Para piorar quando voltaram do Maracanãzinho, os lutadores foram expulsos do Marina Palaca por falta de pagamento . E só não dormiram na rua porque Kim Gracie, esposa de Rickson, conseguiu apoio da Artplan que pagou 4 mil reais aos competidores (o contrato previa 5 mil) e arranjou um novo hotel (Leme Palace) onde Roberto Medina, dono da Artplan, tinha credito.

Mas a humilhação não terminou ai. Na tentativa de ir embora, o canadense Jean Rivierre e o iraquiano Mushtaq Abdullah foram retirados duas vezes do avião uma vez que a Varig disse que as passagens foram pagas com cheques sem fundos. “Sou prisioneiro do Brasil “ ironizou Rivierre numa reportagem ao Jornal do Brasil na época. O canadense só conseguiu voltar para a casa no dia 31 graças ao suporte financeiro da Artplan, parentes e empresários.

Rickson, Royler e Zveiter incrédulos com o calote no torneio que definiria seu oponente

“O SCORZELLI FOI  LOUCO DE NÃO EXIGIR UM DOCUMENTO DO CESAR MAIA”

Depois de desaparecer por duas semanas, Scorzelli foi encontrado pela reportagem da revista Vale-Tudo e ainda teve a cara de pau de se dizer magoado com a imprensa. “O cheque não era para ser depositado. Era um caução e deveria ser trocado na bilheteria do Maracanãzinho. Como as bilheterias estavam sobre controle da Suderj, ocorreu todo este problema” argumentou Scorzelli. A Suderj aliás estava na lista dos lesados pelo empresário. Segundo estimativa apurada pela Vale-Tudo, o montante do estelionato chegava a ordem de 1 milhão, sendo RS 600 mil devido aos lutadores;  RS 1,5 mil a Santa Rosa (aluguel do ringue), RS 20 mil a cenógrafos, RS 10 mil para iluminação, RS 12 mil a torcedores, RS 10 mil para a equipe de som, RS 10 mil para a assessoria de imprensa, RS 6 mil a Varig, RS 6 mil a Hotéis, RS 12 mil a Suderj, R$ 1 mil a Ring Girls e um valor não revelado a GlOBOSAT, que pagou adiantado pela transmissão das lutas.

Duas semanas após o evento entrevistei o mestre João Alberto Barreto, que foi sem dúvida, uma das maiores vitimas de Scorzelli. “Fui convidado para dirigir tecnicamente o evento e informado que a prefeitura se interessou em patrocinar o Desafio. Acreditei no que me foi passado pela Azagaia. Segundo estas informações a prefeitura repassaria a uma emissora de TV verbas publicitárias e esta emissora bancaria o evento. Depois chegou a mim que a prefeitura só bancaria metade do prometido. E posteriormente que não bancaria nada. A Azagaia, então, ao invés de cancelar tudo, continuou com suas fantasias delirantes e nocauteou a todos. O Scorzelli foi um louco de não exigir um documento do prefeito confirmando apoio ao evento”, me disse revoltado na época o mestre, sem querer revelar, no entanto, o valor do prejuízo que teve ajudando a organizar o evento.

Infelizmente, no país do jeitinho, a corda acabou arrebentando para o lado dos lutadores e prestadores de serviço e este triste episódio da história da luta no Brasil terminou “sem culpados”. Um senhor incentivo para que dezenas de outros “Scorzellis” continuassem surgindo prometendo novos mega-eventos “maiores que o UFC” e usando a boa fé dos lutadores para promover outros vexames em âmbito nacional e internacional

PELO MENOS UM PONTO POSITIVO

Diante de tantos profissionais lesados, tive a sorte de, por intermédio deste evento, conseguir iniciar uma parceria profissional que mudou minha vida e permitiu que eu continuasse investindo no jornalismo marcial.

Quando eu estava entrando no Maracanãzinho no sábado (21) para cobrir a fase internacional do evento, vi que três repórteres japoneses sem credenciais haviam sido barrados na entrada do ginásio. Percebendo a falta de bom senso do segurança, diante da violência noturna naquela região, sugeri que eu saísse e um deles usasse a minha credencial para entrar com todo equipamento e credenciar sua equipe. Para minha surpresa o segurança aceitou e o problema foi resolvido rapidamente. Ao final do evento Tanikawa, Endo e Nagao resolveram agradecer me convidando para jantar num restaurante japonês em Copacabana.

O papo varou a madrugada e acabou se transformando numa reportagem de 6 páginas destrinchando para os fãs japoneses a história resumida do Vale-Tudo brasileiro. Descobri isso algumas semanas depois ao receber em casa um exemplar da Kakutougi Tsushin junto com uma carta convite de Tanikawa para que eu passasse a ser correspondente de sua revista no Brasil. Foi o empurrão que faltava para eu tomar a decisão mais importante da minha vida: Abandonar meu emprego como biólogo com carteira assinada na Fundação Bio Rio e mergulhar de cabeça numa aposta sem garantias e nem referências: o jornalismo marcial.

Em tempos totalmente analógicos fui a luta. Montei um estúdio, melhorei a estrutura do meu laboratório fotográfico caseiro e passei a cobrir todos os eventos nacionais mandando reportagens (fotos e textos) via sedex quase todas as semanas, afinal a KT era quinzenal (A KIAI, por exemplo, imprimia 4 revistas por ano). Aos poucos o “Brazil Report” caiu nas graças do fã japonês e dos promotores locais que começaram a ter o espaço como uma espécie de cardápio marcial de onde prospectavam nomes como Alexandre Pequeno (Shooto), Wanderlei Silva e Murilo Ninja (Pride) para os eventos locais. Além dos 17 anos de KT, aquele episódio da “credencial” me propiciou ainda conhecer um grande amigo e parceiro profissional, Susumu Nagao, com quem em 2014 tive a honra de lançar um livro (Do Vale-Tudo ao MMA, 100 anos de Luta). Curiosamente, todo este processo se iniciou graças a este vergonhoso episódio protagonizado pelo Sr. Scorzelli.